sexta-feira, 17 de fevereiro de 2012

Sobre Violinos e Rabecas


Não sei se Rubem Alves gostaria de ver seus textos expostos assim em meu blog, mas não posso deixar de postar alguns de meus preferidos de vez em quando...embora minhas crenças estejam mais ligadas ao Budismo, respeito suas crenças cristãs, imaginando que em determinados pontos, no fundo, queremos dizer a mesma coisa, só que, utilizando nomes diferentes...

Agradeço é claro, à este grande escritor por suas profundas reflexões.


Um grande abraço, Mestre!


Sobre Violinos e Rabecas

Tenho uma enorme simpatia por aqueles que foram vítimas de um erro da natureza. O erro da natureza não pode ser escondido: ele está visível, evidente a todos os que têm olhos. O seu corpo é diferente dos corpos dos “normais”, não é da forma como deveria ter nascido, pertence ao conjunto daqueles que “fugiram da norma”, que são “a-normais”. São então classificadas como pessoas “portadoras de uma deficiência”. “Deficiência” vem do latim, deficiens, de deficere, que quer dizer “ter uma falta”, “ter uma falha”. De de + facere, fazer, aquele que não consegue fazer. Um corpo imperfeito, erro da natureza.

Pessoas religiosas procuram razões divinas para explicar o ocorrido – como se aquele corpo fosse produto de uma decisão de Deus. Quando falo corpo estou nele incluindo a inteligência, pois a inteligência são as asas que o corpo criou para poder voar. Tais pensamentos lhes acodem quando elas, do fundo da sua dor, olhando para o corpo diferente do filho, ou olhando para o seu próprio corpo, fazem a pergunta terrível e inevitável: “por quê?”, “por que comigo?”, “por que fui escolhido?”, “por que não sou como os demais?”. Vem então o sentimento de uma grande injustiça – que é seguido pelo sentimento de revolta contra a vida. Tenho muito dó dessas pessoas. Primeiro, pelo sofrimento causado pela diferença, em si mesma. Segundo, porque o seu Deus é muito cruel. Ele, Deus, sendo todo-poderoso, poderia ter impedido que aquilo acontecesse. Mas ele não impediu. Se não impediu é porque desejou: o meu sofrimento, o sofrimento do meu filho são produto do desejo de Deus. Deus se alegra com o meu sofrimento. Religiosamente elas estão repetindo a crença horrenda: “É a vontade de Deus”. Ora, como amar um Deus assim, tão indiferente ao sofrimento humano? Elas não se dão conta de que, se todas as coisas fossem resultado da vontade de Deus, no nosso universo só haveria beleza e bondade, pois Deus é beleza e bondade. Por enquanto Deus ainda está nascendo, o universo está em dores de parto e o que existe é uma grande sinfonia de gemidos, sendo que o Espírito Santo faz dueto com todos aqueles que foram marcados pela diferença (Romanos 8.22-23).

Há o sofrimento do corpo, em si mesmo: dores, incapacidades, limitações.

Mas há a dor terrível do olhar das outras pessoas. Se não houvesse olhos, se todos fossem cegos, então a diferença não doeria tanto. Ela dói porque, no espanto do olhar dos outros, está marcado o estigma-maldição: “Você é diferente”.

A igualdade é coisa que todos desejam. As crianças querem ser iguais. Daí a importância de ter o brinquedo que todas têm. A menina que não tinha a Barbie era aleijada, estava excluída das conversas, dos brinquedos, das trocas. A criança que não tivesse o “bichinho eletrônico” era uma criança “portadora de deficiência”. “Como não ter o bichinho se todas as crianças têm o bichinho?”. Os pais compravam o bichinho – mesmo sabendo que ele era idiota – para que o filho não sentisse a dor da exclusão. Os adolescentes usam tênis da mesma marca, camisetas da mesma grife, fazem todos as mesmas coisas, fumam e cheiram o que todos fumam e cheiram, falam todos as mesmas palavras que só eles entendem. Ai daquele que falar as palavras da linguagem dos pais, ou que usar tênis e camiseta de marca desconhecida. Esse adolescente é “diferente”, “não pertence” ao grupo, é “portador de deficiência”. O grupo é o “conjunto” – no sentido matemático ao qual pertencem os iguais. Os diferentes “não pertencem” são excluídos. Os diferentes estão condenados à solidão.

As pessoas portadoras de deficiência estão condenadas, de início, à solidão. Por serem fisicamente diferentes e por não poderem fazer o que todos fazem estão excluídos do grupo.

Ser igual é muito fácil. Basta deixar-se levar pela onda, ir fazendo o que todos fazem, não é preciso pensar muito nem tomar decisões. As decisões já estão tomadas. É só seguir a onda. A vida é uma grande festa. Mas o “diferente”está sozinho. Não existe nenhuma onda que o leve, nenhum bloco que o carregue. Cada movimento é uma batalha.

Os “normais” podem dizer simplesmente: “Sou igual a todos, portanto sou.” É a igualdade que define o seu ser. Mas os “portadores de deficiência” têm de fazer uma outra afirmação: Pugno, ergo sum –luto, logo existo. Muitos, sem coragem para enfrentar a luta solitária, desistem de viver e são destruídos. Os que aceitam o desafio, entretanto, se transformam em guerreiros.

Há jardins que se fazem por atacado: basta comprar as plantas no Ceasa e em Holambra. As plantas são produzidas em série, em terra cientificamente preparada. São jardins bonitos, feitos com plantas produzidas em série, todas iguais. Mas há os jardins das solidões, que florescem nas pedras. Dominando o vale está a Pedra Branca, lá em Pocinhos. São algumas horas de caminhada, através da mata que se abre para a pedra nua, vulcânica, esculpida por milênios de água e vento. A gente vai subindo e, de repente, aparece o jardim: orquídeas, bromélias, flores, musgos – tudo numa imensa solidão.

As pessoas são assim também. Há os jardins produzidos em série. Parecem diferentes, mas são todos iguais. Quem quiser um que chame um paisagista. E há aqueles que nenhum paisagista sabe fazer. Brotam da rudeza da pedra vulcânica com uma beleza que é só sua.

Pois foi organizado, em Campinas, o “Centro de Vida Independente” – uma ONG (Organização Não-Governamental) que tem por objetivo reunir as pessoas portadoras de deficiência (PPDs). Surgida nos Estados Unidos, nos anos 70, a “Filosofia de Vida Independente” foi criada por portadores de deficiências graves, provenientes, na sua maioria, de ferimentos na guerra do Vietnã. O seu objetivo é encorajar os PPDs a assumir sua vida de maneira independente, sem medos e sem vergonhas: fazer brotar jardins nas pedras brutas.

Lembro-me de meu amigo Roberto, brasileiro, nos Estados Unidos. Com a parte inferior do corpo paralisada pela poliomielite, ele vivia sozinho, dirigia automóvel, trabalhava, namorava e estava presente sempre, em sua cadeira de rodas, nos comícios contra a guerra. Se não me engano chegou mesmo a ser preso. Ele nos visitava sempre – e era fácil, pois morávamos no andar térreo. Depois, passamos para o terceiro andar de um edifício sem elevadores. Disse ao Roberto; “Que pena! Agora que vamos para o terceiro andar vai ficar difícil para você!” Ele me olhou, riu e disse: “Você me parece forte bastante para me carregar até o terceiro andar!” E assim ficou sendo. Ele montava às minhas costas e eu o levava, bufando, escada acima...

Gramani, amigo rabequista. Rabeca é um violino portador de deficiência. Há muito violino fino sem deficiência que só desafina. Nas mãos do Gramani uma rabeca feita de bambu gigante, deficiente, toca Bach. Pois assim são as pessoas...

Rubem Alves, em Concerto para Corpo e Alma, Editora Papirus